Medicina Baseada em Evidência.

 

A prática de uma medicina calcada em resultados de estudos clínicos não é recente. Desde há muito clínicos renomados buscam na literatura subsídios para corroborar hipóteses e nortear suas condutas em consonância com suas experiências individuais, especialmente diante de casos difíceis (1). Entretanto, tal prática corriqueira nas mão dos nossos mestres mais famosos, ganhou recentemente um novo ímpeto e denominação: medicina baseada em evidencia (MBE). Define-se MBE como sendo a utilização explícita, consciente e judiciosa da melhor evidência atualmente disponível na literatura médica oriunda de observações clinicas sistemáticas (estudos clínicos) com o intuito de tomar decisões pertinentes ao cuidado de pacientes (2).

 

Este processo se inicia com a formulação de uma pergunta específica referente a um paciente acerca, por exemplo, de seu tratamento, diagnóstico ou prognóstico. Em seguida, estrutura-se esta pergunta através de uma terminologia adequada para a busca em bancos de dados de artigos na literatura como MEDLINE, CANCERLIT, EMBASE, etc. Após a busca e seleção dos artigos pertinentes ao caso em questão, os mesmos são julgados quanto a sua qualidade e seus resultados analisados de tal sorte a se poder extrapolar o conhecimento assim obtido para responder a pergunta inicialmente formulada (2).

 

Quais as vantagens da disseminação desta abordagem? Por um lado aposentam-se opiniões anedóticas individuais em troca de opiniões baseadas em resultados de estudos clínicos. A obtenção da informação não é mais exclusiva a alguns mais versados mas é agora acessível a todos, irrespectivamente de sua formação acadêmica. As decisões passam de subjetivas a objetivas e define-se, portanto, uma arena comum para discussões travadas em pé de igualdade por todos aqueles que detenham esta informação. Assim, diante deste novo cenário para o exercício da clínica, cabe-nos tentar elaborar quais as razões para esta redescoberta da MBE e quais as suas implicações para o clínico.

 

Em primeiro lugar, devemos compreender o contexto no qual se opera esta mudança. No seio de uma comunidade médica globalizada pela tecnologia da informação e assoberbada por uma quantidade crescente e volumosa de novos conhecimentos, é compreensível a ênfase que se dá ao domínio desta informação. Paralelamente, a consulta a literatura médica foi extremamente facilitada pela utilização de microcomputadores que acessam em minutos enormes bancos de dados onde todos estes estudos clínicos estão catalogados. Tal acesso, como vimos, não é exclusivo em absoluto a comunidade médica, sendo compartilhado igualmente por profissionais paramédicos e leigos. Portanto, a prática da MBE se encaixa perfeitamente neste novo paradigma vigente atualmente em nossa sociedade que enfatiza a globalizacao e valoriza sobremaneira a manipulação da informação. É, compreensível, conseqüentemente, que o exercício de uma MBE seja estimulado tanto pela comunidade médica como por pacientes e fontes pagadoras.

 

Apesar da atração que a MBE vem exercendo no nosso meio acadêmico, esta abordagem tem também suas limitações, a saber:

 

1) Qual e a solidez da evidência disponível na literatura para resolver uma dada questão clínica? Sabe-se que o conhecimento clínico é essencialmente observacional e é calcado na reprodutibilidade dos achados relatados. A reprodutibilidade de uma observação clínica, por sua vez, será tanto maior quanto melhor for a qualidade dos estudos que a descrevem. Assim, por exemplo, o conceito de que uma uma droga seja superior a outra para o tratamento de uma dada doença será possivelmente muito mais reprodutível e, portanto, crível, se este resultado for oriundo de um estudo do tipo duplo cego randomizado envolvendo um grande número de pacientes. Entretanto, tal achado teria muito menor credibilidade se fosse originado, por exemplo, de um estudo retrospectivo. Deduzimos, assim, que um julgamento judicioso da evidência propriamente dita deve preceder a utilização de seus resultados para substanciar uma decisão clínica.

 

2) Quando os estudos obtidos são contraditórios? Tal situação que é extremamente comum é muitas vezes resolvida pela escolha dos estudos de melhor qualidade. Outras vezes podemos combinar os estudos que tenham se proposto a resolver a mesma questão através de uma metaanálise. Desta maneira, através de um numero maior de pacientes oriundos da combinação de todos os estudos similares escolhidos para a metaanálise, buscam-se efeitos significativos que não tenham sido evidenciados em estudos individuais, devido a um contingente insuficiente de doentes para demonstrá-los de maneira estatisticamente adequada. Apesar desta metodologia estar sendo cada vez mais utilizada, um estudo recente questionou a sua validade (3). Finalmente uma outra estratégia para contornar a controvérsia gerada por estudos conflitantes é a reunião de um painel de expertos que julga criticamente a evidência oriunda de todos os estudos existentes e sugere um conjunto de condutas consensuais.

 

3) Os dados existentes podem ser extrapolados para um determinado doente sob os nossos cuidados? Obviamente o contexto no qual o nosso paciente está muitas vezes é diferente daquele no qual os estudos obtidos na literatura foram conduzidos. Estes estudos podem ser mais antigos e, portanto, não puderam oferecer para os pacientes estudados o benefício de novas medicações ou recursos atualmente disponíveis . Outras vezes os recursos de que dispomos em uma dada instituição são inferiores aos utilizados em um destes estudos. Finalmente, o nosso paciente pode não preencher completamente os critérios de inclusão e exclusão dos estudos escolhidos. Portanto, muita cautela deve ser tomada na extrapolação de dados da literatura, mesmo que consensuais, para um determinado paciente sob os nossos cuidados.

 

4) E quando não há dados na literatura? Tal condição, apesar de incomum, pode ocorrer. As vezes, tudo o que encontramos após uma busca na literatura são apenas um ou dois relatos de casos semelhantes ao do nosso paciente. Nesta situação, dispomos de evidência insuficiente para justificar uma conduta e a conduta clínica dependerá principalmente da experiência individual do médico assistente.

 

Deduzimos do acima exposto que o manuseio adequado da informação presente na literatura exige, portanto, um conhecimento profundo do médico para analisar e sintetizar o conjunto de estudos coletados de maneira ponderada de acordo com a qualidade destes trabalhos. Ainda dentro do paradigma de uma MBE, o clínico não só obtém e julga a evidência, mas também deve conciliá-la com a melhor conduta para um dado paciente. Esta conduta deve se adequar não somente a análise dos estudos clínicos mas também às limitações e vontades do paciente em questão. É, portanto, neste ato conciliatório da evidência com os valores e desígnios da pessoa que se esta tratando, que se demonstra, inclusive no contexto de uma MBE, o lado humano e, porque não, artístico de nossa profissão.

 

Apesar destas limitações, a prática baseada em evidências oriundas de estudos clínicos é seguramente o melhor caminho para se atingir o ideal do exercício de uma medicina científica e objetiva. Necessita-se , entretanto, de um equilíbrio saudável entre a MBE e a experiência clínica do médico assistente pois é do julgamento deste que depende a conduta clínica. A evidência deve embasar escolhas clínicas mas não deve nunca suplantar o julgamento do clínico pois este envolve, como vimos, além da evidência vários outros fatores não menos importantes e peculiares ao paciente em questão. O que a ênfase atual na prática de uma MBE seguramente contribuiu para o clínico moderno foi em salientar ainda mais a importância de sempre se incorporar a evidência existente ao seu julgamento que é, entretanto, soberano.

 

 

Referências bibliográficas: 

  1. Osler W. The principles and practice of medicine. New York , D. Appleton & Co, 1892.

2) Sackett DL, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-based medicine: how to practice and teach EBM. , New York, Churchill Livingstone, 1997.

3) LeLorier J; Grégoire G; Benhaddad A; Lapierre J; Derderian F . Discrepancies between meta-analyses and subsequent large randomized, controlled trials. N Engl J Med, 1997; 337:536-42.

 

Outros sites sobre Medicina Baseada em Evidência na Internet:

American College of Physicians:. Este site contém o ACP Journal Club (http://www.acponline.org/journals/acpjc/jcmenu.htm) que é uma publicação de revisões estruturadas da literatura sobre vários assuntos de relevância em Medicina Interna e outros links sobre Medicina Baseada em Evidência. Destacam-se entre estes o site da Cochrane Collaboration que é especializado na execução de revisões sistemáticas e o site da Universidade McMaster.