PRINCÍPIOS DA ESTRUTURAÇÃO DE ESTUDOS CLÍNICOS:

 

(Baseado no capítulo 4 do livro do Dr. Auro del Giglio: Câncer: uma introdução ao seu estudo e tratamento, Editora Pioneira; São Paulo, 1998).

 

1) INTRODUÇÃO:

 

Neste capítulo procuraremos ilustrar como evolui o conhecimento oncológico. A Oncologia como qualquer outra área da Medicina se basea em estudos clínicos. Cada estudo clínico, por sua vez, procura responder a uma pergunta ou dúvida existente. O conjunto das respostas geradas por diversos estudos clínicos é a base do conhecimento Oncológico e a cada dia novas respostas são acrescentadas ao cabedal de conhecimento já existente. Muitas vezes contraditórios, os resultados de estudos clínicos motivam outras pesquisas para solucionar a controvérsia. Estudos e mais estudos são assim constantemente publicados aumentando diariamente a Literatura com novos conceitos que confirmam ou derrubam as idéias até então vigentes. Este é um movimento constante e progressivo cujo domínio pelos profissionais da área é essencial e atualmente profundamente dependente das tecnologias de informática e de comunicação. Achar uma resposta depende muitas vezes de uma pesquisa cuidadosa da Literatura e da toca de experiências com outros profissionais. Ao final, com as alternativas a mão a escolha envolve uma análise e discussão franca de benefícios, riscos e custos do tratamento escolhido com o paciente. O paciente, por sua vez, só poderá optar por algum caminho se for conhecedor dos princípios subjacentes à obrtenção do conhecimento oncológico que serão explanados a seguir.

 

O princípio básico é que apenas através da avaliação criteriosa da Literatura a cada instante é que poderemos resposnder à pergunta básica:

Qual é o melhor tratamento para um determinado tipo de câncer?

 

Abordaremos inicialmente alguns dos princípios do planejamento e análise de estudos clínicos. Em seguida discorreremos sobre como os estudos são publicados na forma de artigos ou resumos e como podemos achar estudos específicos na vasta Literatura Oncológica. Finalmente explicaremos como conciliar os diversos estudos que possam eventualmente existir na Literatura sobre o mesmo tema para podermos obter, quando possível, um consenso que nos oriente a escolher uma determinada conduta.

 

 

2) O ESTUDO CLÍNICO:

 

Se tratássemos cada paciente de maneiras diferentes certamente aprenderíamos muito pouco com a nossa experiência. Se cada paciente fosse então tratado de maneira não protocolada, não conseguiríamos extrair dos acertos quais os passos corretos e dos insucessos quais as condutas a serem evitadas. A falta de padronização terapêutica impediria que existissem observações clínicas de grupos de pacientes submetidos a um mesmo tipo de tratamento. Estas observações sobre as toxicidades e efeitos de um tratamento em particular constituem a base do conhecimento clínico pois só um efeito benéfico ou tóxico que ocorra em mais de um paciente pode ser valorizado. Isto se deve à enorme variabilidade que existe ao se estudar o efeito de tratamentos em seres humanos. Muitas vezes o próprio placebo (medicação inativa) já tem por si só um efeito terapêutico provavelmente devido ao sugestionamento do paciente. Portanto só podemos considerar válidos efeitos similares que ocorram em pacientes diferentes tratados de maneira uniforme. O pressuposto básico aqui é que um fenômeno ou efeito reprodutível em mais de um paciente tém uma probabilidade maior de ser real e não obra do acaso ( sugestionamento, coincidência etc). O conhecimento oncológico só pode surgir, portanto, do acúmulo de observações reprodutíveis. Necessitamos de dados reprodutíveis para , por exemplo, estimar qual será a chance de um determinado tratamento ser eficaz ou qual é a probabilidade de se observar um determinado efeito tóxico.

 

A existência de estudos clínicos reflete, portanto, a necessidade de se obter dados reprodutíveis e assim evitar que a enorme variabilidade inerente à observação de efeitos terapêuticos em seres humanos leve a conclusões errôneas (obra do acaso). Através dos estudos clínicos convertemos erros e acertos em conhecimento útil para a confecção de novos estudos e também para tratarmos pacientes na prática clínica diária. Cada estudo é comparável a um tijolo de uma infindável construção que é o Conhecimento Médico. Da solidez (reprodutibilidade) dos dados de cada estudo depende a estabilidade da estrutura maior desta construção ( Conhecimento. Médico).

 

A maior diferença, portanto, entre tratar um paciente dentro ou fora de um estudo clínico é que o estudo sempre gera conhecimento. As observações ocasionais são úteis para formular hipóteses que se incorporarão ao Conhecimento apenas se reproduzidas por futuros estudos clínicos. Assim, sempre que possível, devemos incluir nossos pacientes em pesquisas clínicas para que cada caso isolado contribua no contexto de um estudo para gerar Conhecimento. Atualmente, procura-se através da associação entre várias Instituições de pesquisa, incluir números maiores pacientes em estudos clínicos (Estudos Multiinstitucionais). Esta política visa aproveitar ao máximo cada caso individual como uma fonte potencial de Conhecimento Oncológico. Cada caso de câncer é, do ponto de vista científico, uma preciosidade, um modelo vivo da doença, cujo manejo fora de um estudo raramente contribui para a produção de Conhecimento.

 

 

2a) Como um estudo clínico é iniciado:

 

O estudo só pode ser iniciado após a confecção de um protocolo de pesquisa pelo pesquisador que o idealizou (pesquisador responsável). O protocolo explicita o objetivo básico do estudo, quais os critérios para a inclusão ou exclusão de pacientes, os métodos experimentais (doses e periodicidade das drogas, testes laboratoriais necessários, etc) e métodos estatísticos a serem seguidos (maneira de alocar pacientes para os diferentes grupos experimentais, número total de pacientes necessários, datas para a análise intermediária dos dados, etc). O protocolo também deve, além de tornar claros quais são os seus objetivos, explicar como mensurá-los de maneira objetiva para quantificar o efeito dos tratamentos experimentais propostos.

 

 

Para evitar abusos e garantir a segurança dos pacientes , estudos clínicos só podem ser conduzidos por pesquisadores idôneos após aprovação pelo comite de Científico e de Ética de suas Instituições de Pesquisa. Portanto, antes de um estudo ser aprovado é necessário que o protocolo de pesquisa a ser seguido seja analisado por um comite Científico formado por Médicos e profissionais de saúde não médicos (estaticistas, enfermeiras etc). O objetivo deste comite é assugurar que a proposta de estudo seja válida do ponto de vista científico e de que o desenho experimental escolhido para abordá-la seja adequado. Ou seja pergunta-se se, por exemplo, o objetivo do estudo é suficientemente original para que uma vez terminado contribua com informações válidas para o Conhecimento Oncológico. Pergunta-se também, nesta fase, se o pesquisador e a Instituição à qual ele pertence têm todas as condições necessárias para conduzir o estudo em questão. Finalmente, averigua-se se o desenho experimental (número de pacientes a serem incluídos, critérios de inclusão ou exclusão dos pacientes no estudo, maneira de alocá-los aos diferentes tipos de tratamento, tratamento estatístico proposto para os dados oriundos do estudo etc) é adequado para abordar a proposta básica do estudo.

 

Após a passagem pelo Comite Científico o protocolo de pesquisa é então submetido a um Comite de Ética formado por profissionais Médicos, não Médicos da Área de Saúde e por leigos (religiosos, advogados etc). O objetivo do Comite de Ética é garantir a segurança dos pacientes incluídos no estudo. Assim, necessitamos saber se os riscos envolvidos são aceitáveis, se há mecanismos para monitorar os pacientes durante a pesquisa diagnosticar efeitos tóxicos do tratamento e tratá-los precocemente, se esclarecimentos adicionais devem ser fornecidos aos pacientes antes de serem serem incluídos no estudo, etc. Uma vez que o protocolo foi aprovado pelos Comites Científico e de Ética ativa-se o estudo e inicia-se a inclusão de pacientes no mesmo.

 

A participação em um estudo clínico pressupõe, entretanto, a ciência de cada paciente sobre todos os seus detalhes, riscos potenciais e alternativas terapêuticas caso o mesmo não eleja participar no estudo em questão. Esta decisão envolve o médico assistente, o paciente e sua família e deve ter um caráter aberto e permitir que se esclareçam todas as dúvidas existentes. Deve-se também ressaltar o caráter experimental do tratamento ressalvando que não se sabe exatamente qual será o real impacto do mesmo sobre a doença do paciente. Uma vez esclarecidos todos estes pontos a anuência do paciente se materializa na assinatura de um Consentimento Informado ("Informed Consent") que contém toda a informação sobre toxicidades, alternativas e detalhes do estudo por escrito e de forma inteligível e clara para um leigo.

 

 

2b) Tipos de estudo clínico:

 

Os estudos clínicos podem ser prospectivos ou retrospectivos. O estudo prospectivo é aquele que ocorre baseado em um protocolo de pesquisa e inclui pacientes após a idealização do protocolo. Ou seja, só após se conceber um plano de pesquisa é que se inicia o recrutamento de pacientes. O estudo retrospectivo, por outro lado, se basea em dados que foram acumulados antes de sua concepção. Os estudos retrospectivos geralmente se baseam em levantamentos do que ocorreu, por exemplo, com pacientes tratados com uma droga específica ou de uma forma especial durante um certo período de tempo em uma dada Instituição. Como os dados coletados retrospectivamente não obedeceram necessariamente a um protocolo podem existir muitas falhas nestes estudos. Os critérios de inclusão dos pacientes podem não ter sido sempre uniformes durante o período do estudo e o seu seguimento não necessariamente padronizado. Finalmente, apesar dos pacientes terem sido tratados de maneira aparentemente homogênea (por exemplo com a mesma droga), não podemos assegurar , pela inexistência de um protocolo anterior ao estudo, que todos os pacientes foram tratados de maneira exatamente igual (mesma dosagem e periodicidade de administração). Devido a estas falhas que os estudos clínicos prospectivos são superiores aos retrospectivos.

 

Os estudos também podem ser controlados ou não de acordo com a presença ou não de um grupo controle para comparação com o grupo experimental, respectivamente. A presença de um grupo controle similar ao experimental estudado simultaneamente e em paralelo a ele (estudo controlado prospectivo) é a melhor maneira para se saber se um tratamento é ou não superior a outro. A comparação entre resultados obtidos por um grupo experimental com os de outras Instituições diferentes ou com grupos controle históricos da mesma Instituição (tratados antes do grupo experimental) é inferior ao estudo controlado prospectivo. Os estudos controlados prospectivos, por sua vez podem ser randomizados ou não baseando-se na maneira pela qual os pacientes são alocados aos grupos experimental e controle. A randomização é um processo que distribui os pacientes entre estes grupos ao acaso ( por um tipo de sorteio) , ou seja, impede que haja seleção inconsciente de pacientes para um grupo ou outro por parte do pesquisador. Para garantir ainda mais a imparcialidade na condução da pesquisa, o estudo prospectivo randomizado pode ainda ser conduzido de maneira a que nem o doente nem o médico assistente saibam qual é a medicação que o paciente está tomando (estudo prospectivo randomizado duplo cego). Desta maneira elimina-se também o sugestionamento do médico e do paciente que poderia advir do prévio conhecimento do tipo de tratamento ministrado.

 

Os estudos duplo cego randomizados são monitorados por um comite independente dos pesquisadores que conduzem o estudo. A sua função através de análises intermediárias dos resultados do estudo é, quebrando o segredo dos tipos de tratamento para os quais os pacientes foram alocados, saber se já há diferenças significativas em toxicidade ou resposta antitumoral entre os grupos. Se diferenças significativas emergirem antes do final programado da pesquisa, podemos terminá-la precocemente protegendo assim pacientes de toxicidade excessiva e/ou oferecendo a todos o melhor tratamento.

 

O conceito de superioridade de um tipo de estudo sobre outro merece agora uma explicação mais detalhada. Quando dizemos que um tipo de estudo é superior a outro implicamos que a chance de reprodutibilidade do que encontrarmos no estudo melhor é maior. Isto ocorre porque nos estudos inferiores, retrospectivos, por exemplo, há outras fontes de variação diferentes do tratamento em questão às quais alguns ou todos os achados do estudo podem ser imputados. Ou seja, vamos assumir que , por exemplo, em uma Instituição A durante um período de 10 anos tratou os pacientes portadores de úlcera de estômago com dois tipos de cirurgia uma experimental e outra convencional. É possível, que os pacientes selecionados para serem submetidos à cirurgia experimental fossem mais jovens e estivessem em melhores condições clínicas do que aqueles tratados pela cirurgia convencional. Ao analisarmos retrospectivamente os resultados obtidos pela nova cirurgia podemos concluir erroneamente que ela é mais eficaz que a cirurgia convencional . Esquecemos, no entanto, que esta aparente diferença pode ter resultado apenas da inclusão de pacientes mais jovens e em melhores condições clínicas que se operados por qualquer uma das duas técnicas produziriam bons resultados. Assim, a seleção de pacientes melhores para um tipo de cirurgia introduziu uma fonte de variação que complica a interpretação dos resultados obtidos. Este problema poderia ter sido eliminado caso a Instituição A iniciasse há dez anos um estudo semelhante só que baseada em um protocolo de pesquisa que prevesse uma alocação de pacientes ao acaso (randomizada) e balanceada (estratificada) para os dois tipos de cirurgia de maneira a equilibrar entre os braços do estudo pacientes em boas e más condições clínicas. As conclusões deste estudo conduzido prospectivamente seriam muito mais confiáveis e teriam, portanto, uma maior chance de serem reprodutíveis caso este estudo fosse repetido seguindo-se o mesmo protocolo na Instituição A ou em uma outra Instituição.

 

O processo de descoberta de novas drogas oncológicas exemplifica bem os tipos de estudo prospectivos hoje existentes.

 

Suponhamos que haja evidência de que uma determinada planta tém um princípio ativo com atividade antitumoral. Inicialmente procura-se através de estudos bioquímicos fracionar o extrato desta planta e obter a fração específica com atividade antitumoral que é testada em culturas de células oriundas de diversos tipos de tumor (estudos in vitro). Posteriormente já de posse da fração específica dá-se início a estudos pré-clínicos onde animais portadores de tumores experimentais são tratados com doses crescentes desta fração. Procura-se aqui definir se há ou não atividade antitumoral in vivo, quais as toxicidades desta nova droga nos diversos orgãos destes animais e também a dose que mata 50% dos animais (DL50).

 

Iniciam-se em seguida estudos em seres humanos de Fase I. Estes estudos visam apenas estudar a farmacologia da droga tratando pacientes com doses crescentes da droga. Mede-se, entre outros parâmetros, qual é a taxa de eliminação da droga, quais os tecidos do corpo para os quais ela se distribui e em quais concentrações e as toxicidades encontradas para cada nível de dosagem da droga. Obviamente ao se chegar a um nível de toxicidade inaceitável o aumento da dose é abortado e se define a Dose Máxima Tolerada (MTD) da droga em questão como um nível inferior àquele que produziu a toxicidade responsável pelo término do estudo. Estes estudos geralmente são oferecidos a pacientes para os quais já não há alternativas terapêuticas desde que estejam em condições clínicas para enfrentar o estudo e concordem em participar dele. Apesar de poderem ocorrer respostas tumorais, o objetivo deste tipo de estudo é apenas definir a farmacologia da droga . Portanto não podemos prometer aos pacientes que queiram participar nenhum tipo de resposta antitumoral nesta fase de estudo da nova droga experimental.

 

Uma vez definida a MTD em estudos de Fase 1 iniciam-se os estudos de fase 2 onde grupos de pacientes com certos tipos de tumor são tratados com a droga na dose igual à MTD. Define-se nestes estudos a atividade da droga em questão para cada tipo de tumor estudado e, se a droga for ativa, passa-se à Fase 3.

O objetivo dos estudos de Fase 3 é comparar a nova droga com o tratamento convencional até o momento do estudo. Procura-se saber se a nova droga é melhor, igual ou pior do que o atualmente utilizado para tratar o tipo de tumor para o qual ela é ativa. Com esta finalidade usa-se, geralmente, um desenho de um estudo prospectivo controlado randomizado para conduzir os estudos de Fase 3.

 

Nas fases 2 ou 3 geralmente se a droga parece ser ativa em certos tipos de tumor ela é aprovada para uso comercial expandindo muito a sua aplicação até então restrita apenas às Instituições de Pesquisa. Os estudos de Fase 4 ocorrem, então, após a comercialização da droga e visam expandir o conhecimento sobre toxicidades mais raras que não apareceram ou foram infreqüentes nos estudos iniciais de fase 2 ou 3.